Sunday, July 24, 2005

De camisa azul e bermuda desbotada (ou Uma manhã antimatinal)

Hoje acordei inquieto. Minha mente fazia voltas mil, em um turbilhão arrebatador e nada misericordioso. Como marinheiro no meio da tempestade, fiquei desnorteado e enjoado, esperando que passase logo. O tempo, dizem, cura tudo. Menos o próprio tempo. Pra isso ainda não inventaram remédio.

Os ponteiros do único relógio que ainda não tinha parado por falta de corda ainda faziam um ângulo reto entre si . Lá fora, nem os passarinhos, líricos por natureza, cantavam. Estava tudo... silencioso. Se me esforçasse, podia ouvir minha própria mente sussurando mensagens normalmente inteligíveis. Talvez se pudessemos nos ouvir mais claramente todos os dias...

Todos dormiam o sono dos justos. Ou o dos ébrios. Cada passo dos meus pés , que por culpa dos anos de patins estalam, pareciam macular toda o cenário. Senti-me como se estivesse saindo furtivamente pela manhã da casa de um fruto da bebedeira e da lascividade, necessariamente nessa ordem. A situação era pra mim tão constrangedora e sufocante que esbarrei na cômoda de propósito, só pra ouvir aquele som anárquico rasgar o silêncio, mas com irritante classe ele se recompôs e sentou-se novamente em seu trono.

Da janela se via o gramado parcialmente inundado pela luz do astro rei, aquela luz que deixa a grama quase verde fluorescente. As cachorras andavam preguiçosamente, assim como eu. Na boca, o gosto de corrimão de puteiro me fazia lembrar das algumas coisas que me lembrava de ontem a noite. Saí para respirar um pouco do ar matinal, algo que meu corpo não está mais familiarizado. A manhã não é amiga daqueles com hábitos poucos saudáveis. Nesse momento redescobri o prazer de viver manhãs, provavelmente amassado em algum lugar no fim do meu arquivo de sensações. É tão certo quanto dois mais dois são quatro dizer que cada hora do dia tem sua característica específica. Comer, correr, tomar um whisky, todos trazem uma sensação diferente dependendo de quando são feitas. Melhor ou pior é questão de onde e quando você nasceu.

Acendi então meu amigo para todos os momentos, exceto dentro de shopppings, restaurantes e outros lugares fechados. Na vida, há sempre o que se excetua. Da exceção vivem todos todos os meus sonhos e anseios. Enquanto baforava, fui ficando mais sereno e fui pensar no meu dia, mas lembrei que nada tinha pra fazer. Excesso de tempo. Alguém já ouviu falar nisso? A cachorra menor veio para perto de meus pés, buscando um afago e abanando o cotoco aonde hoje estaria o seu rabo. Ao invés de carinho, no entanto, recebeu um pontapé nas costelas. Se cachorros falassem, aposto que ela teria falado algo cabeludo, me chamado de grosso, insensível e o que mais constasse no seu vocabulário de cadela. Não a culparia. Nessa manhã, em especial, não queria demonstrar afeto por ninguém. Alguém um dia disse: "o egoísmo é uma bênção".

De volta a sala, não sabia o que fazer. Não tinha fome, o que é algo raro de se acontecer. Queria tomar um banho. O banho é um dos meus momentos favoritos do dia. Sinto algo purificador e renovador. É clichê, claro, mas quem se importa? Quem disse que o mundo é feito só de coisas originais? Mas naquele momento, eu estava com preguiça até pro banho. E além disso, não queria acordar ninguém. Por mais que o silêncio me incomodasse, estava gostando da minha companhia.

Enquanto pensava nisso tudo, me surpreendi fazendo algo que não fazia desde minha infância: estava andando em volta do tapete, contornando-o inúmeras vezes, olhos fixos no chão, acompanhando os movimentos dez pras duas dos meus pés gordos. Um vento passou e recuou as páginas daminha memória direto praquele grande apartamento na Asa Sul, aonde passava vários minutos solitários, mas não no sentido negativo da palavra, me dedicando ao meu estranho passatempo. E isso me acalmou mais um pouco. Foi como sentir o cheiro da sua primeira namorada, ou o cheiro do refeitório do jardim de infância.

Já que não sabia o que fazer, meu corpo decidiu por mim, e fui ao banheiro. Ao me olhar no espelho, notei uma nova marca de expressão no meu rosto. Junto com a gordura excedente, isso está se tornando cada vez mais comum. Assim que dei descarga, rodei a maçaneta, sem lavar as mãos mesmo, e abri a porta. Ou pensei que ia abrir. Com meu movimento brusco, a parte de dentro da maçaneta caiu, sobrando apenas a parte de fora, que já se encontrava bamba e prestes a encontrar o chão como sua outra metade. Isso tornava impossível reencaixar as duas partes, de modo que descobri: estava preso. Por um segundo, me odiei profundamente. Sabia que a porta estava comproblema, mas, perdido em meus pensamentos nostálgicos e levado por meu instinto de evacuação instantânea, não lembrei desse detalhe.

Tentei recolocar a maçaneta, no lugar, mas a esperança logo se transformou em desespero e, por um fio, não derrubei o outro lado, o que me sentenciaria a algumas horas de espera naquele cubo. Olhei para a janela, mas elas tinham barras de segurança. Maldita segurança. Tentei então fazer o mais óbvio: gritar por ajuda. Como todas as primeiras palavras do dia , o primeiro grito saiu fraco e rouco, mais pareceu um lamento de um moribundo. Limpei a garganta e por mais incontáveis vezes chamei por socorro. Tudo em vão. Todos emaranhados nas teias dos sonhos, ao som da lira de Orfeu. Ou apenas ignorando um chamado de socorro. Mas isso pouco importava. O fato é que eu estava preso. Quando disse que estava gostando de minha companhia, não quis dizer nessa intensidade toda. Precisamos de uma distância civilizada até de nós mesmos. Sentei na privada e esperei. A privada, companheira de merda, perfeita pra essa situação. Foram uns 5 minutos com gostinho de cola. Tão insuportável e aparentemente interminável era a situação, no fim dessas 3 voltas de Fórmula 1, já não aguentava mais o som da minha respiração. E quando algo vital começa a te fazer mal, é sinal de que a coisa não anda bem mesmo. Foi aí que decidi fazer algo hollywoodiano, mais pra fazer algo do que por esperança mesmo.

Providencialmente localizado na pia, peguei um grampo de cabelo e fui tentar resgatar o que ainda restava da maçaneta no buraquinho. Se meu mullet estivesse maior e meus cabelos fossem loiros, poderia estar tranquilamente em um episódio de Profissão Perigo. Com precisão de cirurgião que opera gente famosa, introduzi o pequeno objeto na fenda e tentei puxar a maçaneta. E, pro meu espanto, funcionou! Em poucos segundos, trouxe a maçaneta de volta pra sua posição original, o que possibilitou minha saída da minha prisão escatológica. Abri a porta. O sol já raiava mais forte e ouvi passos nas escadas. Sorri um sorriso de satisfação. Dever cumprido. Sensação estranha nos últimos tempos. Naquele momento, queria ter me olhado no espelho.

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Escreva um livro... "a maçaneta das trevas"

8:04 PM  
Anonymous Anonymous said...

desesperadamente: escreva um livro.

esse é o tipo de descrição que não consigo fazer. sinto inveja.

e quero linkar. pode?

7:56 PM  
Anonymous Anonymous said...

ah, sou eu ai - a aônima.

7:56 PM  
Blogger Christian Gurtner said...

Eu não chego nem aos pés de uma narrativa dessas... e mesmo assim escrevi um livro.

Então reforço os comentários ateriores: ESCREVA UM LIVRO!!!

7:07 AM  

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